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A boca da noite, no meio do sertão, é o momento mais simpático das vinte e quatro horas do dia. Longe das luzes e do rebuliço da cidade, temos nestas paragens a brisa aconchegante, a visão plena do céu e o silêncio absoluto da terra, entrecortado, aqui, acolá, pela cantoria dos grilos. Olhando para cima, nas noites de verão, avistam-se os astros companheiros de toda a noite: Órion, o caçador; as Três-Marias, irmãs; Sírius, em sua solidão brilhante; a Ursa Maior; o Cruzeiro do Sul; o Sete-Estrelo, para onde não devemos apontar, sob risco de nascer um panarício na ponta do dedo. E mais e mais estrelas espalhadas no breu enorme do Firmamento, como pedrinhas de cristal caprichosamente grudadas sobre um véu escuro.
Toda essa população de astros costuma fazer corte à Sua Majestade a Lua, deusa sazonal que surge discretamente, e vai crescendo a cada noite, até encher plenamente o seu ventre e derramar sua luz cândida e branca sobre os confins da terra adormecida. E nada mais que isso se vê no céu, exceto um avião ou um satélite riscando a abóboda do infinito, como vagalumes. E também as estrelas cadentes, que são lampejos do fósforo de Deus, tentando, talvez, nos enxergar na escuridão profunda do seu Universo. E assim mergulha o sertão no imenso oceano da noite, sem variação alguma, na sucessão eterna das horas e dias. Noite dessas, entretanto, não faz muito tempo, algo novo, insólito e estranho modificou, por instantes, o panorama sideral. Nas cercanias onde Júpiter, o gigante, aparece no céu, um objeto invulgar apresentou-se, como uma pequena nuvem circular, ou pluma, ou mero cuspo dos deuses. Era boca da noite, e lá, no palácio sideral, estava o visitante esquisito, embaçado, fosco, como um dente-de-leão entre as estrelas. Uma supernova? A Estrela de Belém? Uma explosão espacial? Tudo se perguntou. A hipótese de disco voador, nem se fala, passou por incontáveis cabeças. De repente, não mais que de repente, o objeto estranho sai do canto em que estava e marcha em direção à Lua crescente, que se exibia tão bela como sempre, na varanda do seu castelo. E, nessa breve caminhada, o estranho desapareceu. Não demorou, porém, para que internautas, aqui na superfície terrestre, descortinassem a verdade dos fatos e mostrassem em suas embaladas redes sociais o que realmente estava acontecendo naquele céu noturno e tranquilo de novembro. Tratava-se, viemos a saber, que estávamos vendo o rabo de um foguete lançado na China, naquele anoitecer daqui e amanhecer de lá. A coisa arribou do solo chinês em direção à Lua, levando em suas cacundas um robô, que por sua vez foi garimpar no solo do nosso satélite natural, um punhado de pedras para, quem sabe, atirar na Terra, invertendo com isso uma antiga definição de loucura. Quem me lê agora deve estar coçando a cabeça e cogitando: “Ih, foguete da China!” Pois é. Foguete da China. A mesma China que em 2020 botou o mundo inteiro num rabo de foguete, espalhando um bicho invisível e assassino que já fez milhões de vítimas por todo o orbe terrestre. É o caso, pois, de se perguntar: terá o foguete chinês ido levar vacina para imunizar São Jorge, ou simplesmente tirar de São Jorge e de seu cavalo o seu sossego eterno e formidavelmente lunar? Nada sei. Observo apenas que, depois de tudo isso, a boca da noite sertaneja voltou ao seu deslumbramento e tranquilidade de sempre, ilustrada pelo piscar das estrelas e pelo luar cristalino, que tanto já inspirou os poetas, amantes e solitários. E mais ainda: a coisa revelou que, surpreendentemente, há mais pessoas na cidade que observam o céu noturno, do que pode supor a nossa vã imaginação.
Pedro Paulo Paulino |