Glaubia Santos |
Há alguns anos viveu em Canindé um tipo popular bastante conhecido por suas originalidades. Lopes, ou “Lopim”, como todos o tratavam, habitava solitário algum recanto da conhecida Praça Azul, no centro da cidade. Trajava invariavelmente calça e camisa brancas e surradas. De feitio mirrado, rosto miúdo, era visto sempre curvado em seu inseparável bastão, com o qual perambulava vagarosamente pelas ruas centrais, de onde nunca arredava pé.
Era distinto, atencioso e cortês. Tinha donaire e uma elegância oriunda do próprio abandono. Em termos atuais, era dotado do que se chama resiliência aos contratempos da vida. Por hábito, pluralizava a seu modo tudo o que dizia. Se avistasse um cachorro na rua, um apenas, alertava os transeuntes: “Cuidado com os cães!”. Por causa dessa sua mania linguística, chamavam-lhe também “Lopires”.
Outro hábito seu era tomar com frequência a sua pinga, a mesma que num passado remoto tenha-lhe, talvez, levado aos escombros do meio social. Mesmo assim, não esquentava banco de boteco nem ocupava pé de balcão. Quando lhe davam algum trocado, ia à venda, comprava a cachaça e a armazenava num recipiente de plástico que ele trazia preso por dentro do cós. Bastava-lhe o vício fazer cócega, puxava o recipiente e, a exemplo de um caubói dos filmes, entornava-o na boca, dispensando copo.
O cantil improvisado do Lopim acompanhava-o aonde ele fosse. Inclusive, à igreja. E foi numa dessas ocasiões que se deu esse lance original. No momento solene da consagração, o cálice erguido na mão do celebrante em rito demorado, Lopim retira do cós o seu cantil de aguardente, levanta-o na altura da boca, olha concentrado para o sacerdote e quebra o silêncio do templo com essa frase: “Não me fazes inveja!”.
Em seguida, entre risos abafados dos circunstantes, e num gesto, digamos, iconoclasta, despeja na boca a sua generosa talagada de pinga…
De outra feita, Lopim deslocava-se pela rua, na sua marcha calma, como que contando cada passo, quando é interpelado por um comerciante, seu amigo, a quem sempre fazia pequenos favores:
– Lopim, vá ali na lanchonete e compre pra mim uma garrafa dágua.
De posse de uma nota de dez cruzeiros, Lopim sentiu-se de imediato atacado por uma tentação satânica, que até então jamais havia ameaçado macular a sua personalidade impoluta, de mendigo honrado. Mas quem, sendo o mais fraco dos mortais, resiste numa hora dessa? Sucedeu que, em vez da lanchonete, ele marchou resoluto para a velha bodega do Raulino, bebedouro acolhedor de toda a fauna de papudinhos da cidade. Ali, encheu até a tampa o seu canil, pagou com a nota comprometida, e rumou para sua toca, onde tomou a carraspana mais feliz e despreocupada deste mundo…
O efeito colateral sobreveio nos dias seguintes. Intimidado pela própria consciência, Lopim começou por arranjar atalhos para, tão cedo, não passar em frente ao comércio do homem. Houve vezes, até, de ficar de esguelha nas esquinas, reparando, de longe, se avistava o seu carrasco. Dias depois, porém, confiando na ação competente do tempo, que tudo apaga, e julgando que o comerciante já nem mais lembrasse de uma infração tão banal, Lopim volta pela mesma rua, com seus passos lentos, tranquilo, assobiando, como se nada houvera acontecido. Mal o avista, no entanto, o comerciante sai na calçada, e, num gesto largo e vantajoso de quem cobra a quem deve, exclama:
– Lopim, cadê a água que eu mandei você comprar naquele dia, rapaz?!
Mão direita apoiada na bengala, a outra escorada na cintura, e com a cara mais polida do mundo, Lopim reage, fantasiando espanto:
– Oxente! seu Antônio, e o senhor ainda ‘estares’ com sede?!…
Pedro Paulo Paulino