VISITA A ZÉ FREIRE
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Deitado na rede estirada entre dois armadores, na pequena mas aconchegante sala de sua moradia, as janelas abertas deixando entrar o vento agradável da manhã, foi assim que encontramos o Zé Freire, sertanejo dos mais populares nos sertões de Canindé. A ida até seu rancho, localizado no distrito que tem o auspicioso nome de Esperança, partiu de um convite do meu amigo Capitão Ari Bezerra, veterano da Marinha Mercante do Brasil.
A viagem até lá é feita, em parte, sobre o asfalto da rodovia estadual que liga o povoado de Campos à terra dos monólitos. Depois, percorrem-se nove quilômetros de estrada de chão, bem cuidada e cercada de um lado e outro pelo verde da caatinga, depois das chuvas recentes.
A morada do Zé Freire fica à margem esquerda de quem chega àquela sede distrital. Casa modesta, ilustrada por roseiras na frente e no quintal. Dentro, ornamentando as paredes, diversos quadros singelos, a maior parte, gravuras de santos. Na parede da cozinha, destaca-se uma moldura com a fotografia do Zé Freire posando em frente à sua antiga caminhonete, na qual fazia horário todas as manhãs. Na foto, ele está em perfeita forma: botas, calça jeans, camisa xadrez e, na cabeça, o seu inseparável chapéu estilo caubói.
Examinando a foto e olhando para o Zé Freire, sentado diante de mim, observo as marcas do tempo em toda a sua pessoa. Entretanto, mesmo carregando o fardo da idade, sustenta sua comunicação articulada e jocosa, o seu bom astral, a inspiração à flor da pele e a memória de meter inveja. Jubila-se com nossa presença. Recebe-nos emotivo, as mãos enxugando os olhos, cuja luz está severamente comprometida por conta do glaucoma. Um olho já perdido, o outro quase cego. 86 anos. Muita história para contar, sempre dosadas do seu gracejo característico. Ao redor, a caatinga se enfeitando de verde toma conta do resto.
– Este verde e este local são um pequeno oásis, comento. Ele desconhece a palavra oásis e dá seu parecer, vitaminando bem a conversa, como é de seu bom natural:
– Isto aqui, Pedro, abaixo de Deus, é obra minha e do seu Chico, meu ajudante. Eu sempre acordava primeiro que o galo e já dava de garra da luta. Desde o dia que nasci, trabalhei mais do que jumento fazendo açude.
E prossegue desfiando caudalosamente o rosário da sua trajetória no mundo, seja como boiadeiro, seja como curandeiro, quiromante, feitor de obra, mochador de boi, poeta e profeta, motorista de horário, criador e roceiro, enfrentando pau e pedra, chuva e seca.
– Não reclamo a Deus nem ocupo Ele com pouca coisa. Conheço 23 estados do Brasil. Quando eu era rapaz, era tanta mulher atrás de mim, que parecia 14 açude arrombando numa grota estreita.
Dito isto, nos convida para o café com pão de milho da hora, servido pela D. Laninha que, segundo ele, foi sua derradeira conquista, a qual lhe deu os herdeiros caçulas: o Cidrak e o José Freire Jr. “Este último”, diz Zé Freire, “puxou noventa e nove por cento do meu sangue. Só é menino na parença, mas já tem ação de cabra macho disposto e namorador”.
Depois, nos mostra os cômodos da casa. Na sala principal, quadros pequenos ilustram as paredes. Retratos de familiares, amigos vivos, outros falecidos, e santidades, no meio dos quais, a imagem de Frei Galvão se destaca perto do retrato de São Pedro, padroeiro daquela redondeza. “O cristão que bem souber não deixa faltar uma imagem de Frei Galvão pendurada na parede e uma vela de sete dias no canto da sala”, adverte o nosso anfitrião.
No meio da nossa prosa, Zé Freire confessa que uma de suas queixas mais pungentes é não ter aprendido a ler. O que sabe de memória é por ouvir a leitura dos outros. “Quando eu era menino, já trabalhava feito bicho e não tive tempo nem de barrer uma escola.”
José Freire Sobrinho nasceu pelos idos de trinta, na fazenda Buriti, no meio do sertão cearense. Recém-chegado ao mundo, bebeu água num chocalho de ouro, e o precioso líquido banhou seu espírito com notável inspiração. Conversa desenrolado como quem atira milho pra bode solto no terreiro. Tem brilho na prosa e o lampejo do improviso.
Agora, contando 80 e mais alguns anos, tem por temor apenas a famigerada diabete. E filosofa: “Essa doença é que nem mulher perigosa: passa a vida toda com a gente e, no fim, mata o peão”. No entender dele, é fatalmente desavisado “o homem que confia em freio de carro, boca de urna, ponta de touro e coração de mulher”.
Encerrando a nossa visita, presenteia-nos com mudas de roseiras do seu pomar. E vaticina: “Quando chegar o mês de março, o açude que não for bem feito, vai sangrar no meio da parede”.