© Arquivo pessoal/Pedro Paulo Paulino |
Ainda sobre o Dia da Criança, transcorrido em 12 de outubro, faço aqui algumas considerações, e pedindo licença ao caro leitor, para puxar um pouco de brasa para a sardinha da minha infância. A foto que ilustra esta crônica é uma das poucas fotos que restou da minha meninice vivida na zona rural. Na imagem, malconservada, estou sentado no balcão da bodeguinha do meu pai, um pequeno comércio de beira de estrada. E seguro um gato. Nessa época, eu tinha uma fazenda de gatos, com um rebanho estimado em cerca de dez cabeças, dos quais cuidava com todo desvelo. Nesse mesmo balcão, durante as tardes, quando cessava a freguesia, meu pai, que não sabia ler, convocava-me para ler folhetos de cordel para ele e amigos dele, habitués do modesto comércio. Os folhetos, ele comprava na feira, em Canindé.
Certa vez, aconteceu um fato interessante. Um amigo de meu pai, fazendeiro da região dos Inhamuns, viajava regularmente do sertão para Fortaleza, onde seus filhos residiam e estudavam. E tinha como parada certa a bodega do meu pai. Ambos tratavam-se amigavelmente como compadres. Falavam de chuva e de seca, do preço dos gêneros, de coisas do sertão. Certa feita, seu Totonho, como era conhecido, chegou à tarde, estacionou sua caminhonete e deparou-se comigo sentado no balcão, com uma pilha de folhetos de cordel ao meu lado. Cumprimentou meu pai, apertaram-se as mãos, olhou para mim e perguntou: – Compadre Pedro, esse seu menino sabe mesmo ler verso? Meu pai respondeu: – Faça um teste, compadre. O homem puxou um dos folhetos da minha coleção de cordel, e disse: – Leia este. Era o famoso cordel A chegada de Lampião no inferno, um clássico do grande poeta paraibano José Pacheco. Meu pai fez um sorriso e disse: – Esse aí, ele sabe decorado. O homem olhou sério para mim e emendou: – Pois se ele disser de cor, sem errar uma palavra, na próxima semana ele vai ganhar um carneiro que eu vou trazer da minha fazenda. E eu, quase de olhos fechados, mandei brasa, sem sequer fazer pontuação, quase cantando: “Um cabra de Lampião / Por nome Pilão Deitado / Que morreu numa trincheira / Num certo passado / Agora, pelo sertão / Anda correndo visão / Fazendo mal-assombrado”. E tá, tá, tá… Ganhei o carneiro, no qual ainda passeei montado, estimulando-o com um chicotezinho de couro que meu pai mandou fazer. Há certas alegrias que não mais se repetem em nossa vida. Nessa mesma época, eu devia contar uns nove anos, quando ganhei de meu pai uma bicicleta Monark novinha em folha. Não dimensiono o tamanho da minha alegria, porque não há tradução em palavras. Era uma bicicleta vermelha, o mais recente modelo da época. Ainda sou capaz de sentir o cheiro dela, de senti-la. À noite, colocava-a perto da minha rede. E já amanhecia com uma flanela na mão, para lustrá-la. Em seguida, os passeios nos arredores da moradia. Comecei então a enfeitá-la de tudo: para-lamas, duas buzinas, uma a pilha, outra fon-fon, farol com dínamo ligado ao pneu traseiro, pisca-piscas, decalques, fitas nos aros, enfeites nos raios, capa da sela com o emblema do meu time, luvas decoradas no guidom… Tudo o que uma bicicleta de estimação merecia de enfeite. Havia em Canindé uma loja chamada “O Bazar das Bicicletas”. Era uma tentação. Todo tipo de enfeites encontrava-se lá. Meu pai, que não me negava nada, dentro da sua modesta condição, dava-me dinheiro para comprar os enfeites. Perdoem-me, mas estou falando de uma época quando ainda havia infância e meninice. Parece até que os humanos, hoje em dia, já nascem adultos, com um smartphone amarrado ao cordão umbilical. Eu tive infância. E como diz aquela bonita canção: “Eu era feliz e não sabia”. Diante destas minhas recordações, grito intimamente o grito do poeta Casimiro de Abreu: “”Oh! dias da minha infância /Oh! meu céu de primavera!”. Pedro Paulo Paulino |