Chamava-se Fátima. Morreu em tenra idade, em 1974. Podia ter sido um anjinho como tantos outros de sua época, quando a mortalidade infantil ainda acontecia em larga escala. Podia também ter sido enterrada numa encruzilhada, caso fosse pagã, como mandava a tradição. Pois até não muito tempo atrás, no pensar de uns, as crianças que morriam sem o batismo não eram dignas de ser enterradas no cemitério, mas numa encruzilhada, via de regra formada pelas veredas sertanejas, e seu espírito subia para o limbo, um lugar neutro, nem céu nem purgatório. Já outros acreditavam que a criança morta e pagã, que não conheceu o pecado nem o mal, tornava-se logo um anjinho e devia ser enterrada isolada do campo santo dos pecadores, e na condição de anjo, escalava o caminho direto para o céu.
Folclore à parte, o caso de Fátima foi bem diferente. Ela tornou-se um anjinho internacional e foi parar em páginas de livro. Vamos ao caso. A fotografia dita lambe-lambe estava em alta. No pátio em frente à basílica instalavam-se os modestos estúdios ao ar livre, com seus cenários temáticos em torno da romaria. Diante de uma câmera lambe-lambe, foi exposto o pequeno caixão de Fátima, na calçada do sobrado onde hoje funciona a biblioteca municipal. A foto mostra, em torno do caixão, um pequeno agrupamento de pessoas humildes, e em meio delas, familiares da criança morta.
Por esse tempo, encontrava-se em Canindé o pesquisador e escritor suíço Hugo Loetscher, que travou conversa com vários nativos, dentre eles o sineiro Getúlio Colares e o icônico fotógrafo lambe-lambe, Zé da Mocinha. O episódio da criança morta deixou o visitante suíço tomado de curiosidade. Como pesquisador, ele quis saber detalhes da breve trajetória de Fátima neste mundo. E assim, colhendo dados e mais dados, puxando conversa com um e outro, visitando pontos-chaves da religiosidade popular, fazendo um apanhado dos costumes e tradições locais, ele tornou Fátima a personagem central de um romance de sua autoria, cujo título traduzido é Mundo Milagroso. A imagem da menina morta no caixão serviu de ilustração para a capa do livro de Loetshcer.
Passados 25 anos, em 1999, ele retorna a Canindé, na companhia do estudioso belga Jeroen Dewulf. A viagem de ambos ao Brasil rendeu dois artigos que têm como foco a história de Fátima. As narrativas ajudam a compor o livro 40 Anos – Casa de Cultura Alemã no Ceará, uma compilação bilíngue, alemão-português, de dezenas de textos de diversos autores, com cerca de 500 páginas, lançado em 2003 pela Universidade Federal do Ceará. A narrativa de Dewulf é uma carta endereçada a Fátima, daí o título: À procura de um anjinho. Já a narrativa de Loetscher tem como título A carregadora d’água, e a personagem central também é, claro, Fátima. A tradução do texto vem assinada pelo professor de língua alemã e um dos organizadores da obra, Tito Lívio Cruz Romão, que tem suas raízes de família no município de Canindé.
Logo no início da narrativa, Loetscher escreve: “Se os anos tivessem sido bons ou ruins, independente de como se tivessem alternado, uma coisa, Fátima, com certeza terias sido: carregadora d’água. Uma daquelas carregadoras d’água que se podem encontrar no Nordeste”. O autor se baseia, naturalmente, na condição humilde de Fátima, morta na infância, certamente, em situação de pobreza extrema. Não questionemos. O certo é que Fátima foi, portanto, um anjinho que Canindé, há muitos anos, exportou para o exterior e, sem dúvida, para o céu, o céu dos anjos.