O que motiva esta crônica trata-se, em suma, de matéria apimentada para um bom conto de terror ou alguma outra história macabra, com ingredientes colhidos, ainda quentinhos, diretamente na fonte das escabrosidades da vida real. Na pena de um Edgar Alan Poe, teríamos aí mais uma de suas Histórias Extraordinárias. Com Mary Shelley, dona de Frankenstein, não perderíamos também uma atraente narrativa de terror. Todavia, contentemo-nos, pelo menos até o momento, com esta modesta crônica que trata de um fato registrado nesta semana, o qual, dada a sua bizarrice, ganhou o universo midiático, escapou das fronteiras do país e alcançou repercussão nos portais de notícia do mundo inteiro.
Afinal de contas, não é todo dia que se sabe da notícia de que um defunto é levado a uma agência bancária, com o intuito de, lá, contrair um empréstimo financeiro. Pasmem uma vez mais! Pois, como já é do conhecimento de todos, tal coisa aconteceu, na terça-feira passada, no Rio de Janeiro, região de Bangu. Vale a pena uma sinopse.
É ainda começo da tarde quando, sentado em uma cadeira de rodas, Paulo Roberto Braga, 68 anos, é empurrado até o interior da agência bancária, pelas mãos da sobrinha identificada como Érika de Sousa Vieira Nunes. Até aí, nada demais, se o viajante na cadeira de rodas não estivesse, literalmente, morto. No local, desenrola-se então um roteiro de meter inveja à produção da comédia Um morto muito louco, sucesso do cinema há algum tempo. Enquanto a sobrinha insiste para o tio assinar um documento, necessário para sacar o valor de dezessete mil reais, o contratante, pálido, cabeça pendida, não dá o menor sinal de resposta.
O diálogo da mulher com o cadáver, diante dos que presenciaram a cena, é algo digno da performance desembaraçada de um ator, digo uma atriz, do mais gabaritado talento. “O senhor precisa assinar. Se o senhor não assinar, não tem como. Eu não posso assinar pelo senhor, o que eu posso fazer eu faço”, afirma, suplicante, curvada e cheia de piedade, a sobrinha descarada. E, ainda com mais velhacaria, segurando a mão macilenta do morto: “Assina, para não me dar mais dor de cabeça, eu não aguento mais”. E tenta completar a farsa indagando se o tio, completamente mudo, queria voltar para a emergência. O golpe é patente.
Perante as cenas por demais bizarras, escancaradas nos instantes seguintes em tudo que é rede social da internet, questiona-se até que ponto do infinito é capaz de chegar a artimanha humana, na sua incontida alucinação quando o assunto é botar a mão no vil-metal. Fria e calculista, Érika atreveu-se a encarar e tentar driblar, com frieza glacial, o fechado labirinto protocolar de uma agência bancária, na vista de funcionários e de todo o arsenal de fiscalização eletrônica, em vã tentativa de aplicar um golpe naquela instituição, usando como testa de ferro um… cadáver! Houvesse um Oscar para as produções da vida real, o caso de tio Paulo, como ficou conhecido, bem que poderia levar a estatueta em, pelo menos, quatro categorias: Roteiro Original, Melhor Atriz (Érika) e Melhor Ator Coadjuvante (o morto), Melhor Curta-Metragem em Live-action e Melhor Efeitos Visuais (as cenas da sobrinha, insistente, tentando convencer o tio defunto, que o comprovem).
O logro é esclarecido. Érika é presa em flagrante. Vai responder por furto mediante fraude e vilipêndio de cadáver. Para alívio da alma de tio Paulo, que, indefeso, carregaria para quitar na eternidade uma dívida contraída em morte.
5 Comentários
Descrição fantástica quanto ao fato ocorrido. A mídia brasileira disputa entre si, que leva mais sangue à casa do consumidor. A que ponto chegamos. Mas a sua maneira de descrever o fato é digna de louvores dos melhor escritores da nossa língua.
Obrigado, meu caro Dr. Pedro. É gratificante tê-lo como leitor. Abraço!
Sigo aplaudindo de pé a cada nova crônica, poeta.
Mui grato, poeta Arlando Marques! Abraço!
Não sou de reler um livro nem repetir assistindo a um filme. Todavia, por diversas vezes, assisti a Um Morto Muito Louco (Weekend at Bernie’s – 1989).
E, cada vez que eu assistia, gargalhava muito, mesmo considerando impossíveis aquelas cenas.
Mas eis que, beirando 35 anos, aquele filme ganha um versão tupiniquim, com características semelhantes ao que realmente acontece nas filas dos bancos (públicos mais do que nos privados). Talvez só superadas pelas filas do INSS.
Pedro Paulo Paulino é agraciado por uma visão crítica e abalizada, personalizada que favorece a umas pessoas ou estremece outras pessoas conforme os méritos ou deméritos.
Esta história merece de Pedro Paulo Paulino a mesma habilidadosa redação dada ao caso da morte de um cachorro no avião.