Rubem Braga, mago da crônica brasileira, tem uma que se chama “Um pé de milho”, que aliás virou título de livro. Texto enxuto e saboroso como o próprio milho em todas as suas performances, da espiga cozida ou assada à pamonha. Palavras líricas com cheiro de milho verde e a magia de uma boneca de milho agarrada ao caule, os cabelos loiros atiçados ao vento.
No meu caso, admirável Braga, permita-me falar qualquer coisa sobre um pé de algodão, tão misantropo quão seu pé de milho urbano. Avistei-o à beira do asfalto, sob o céu límpido e ensolarado de setembro, que é um cartão-postal sertanejo. Já de longe chama atenção, com seus galhos segurando uma mancheia de maçãs amadurecidas e abertas, ostentando cada uma um floco de neve em forma de pluma.
Parado, admirei demoradamente aquele pé de algodão, cercado pela caatinga cinzenta. E olhando aquele vegetal eremita, minha memória ficou cheia de pés de algodão acenando para recordações plantadas no solo da minha infância. E meditei: que doces tempos alcancei viver, quando a safra do algodão era o eldorado para o pequeno trabalhador da roça.
Terminada a colheita do milho e do feijão, nos anos bons de inverno, vinha a época mais esperada do ano. E os meses de setembro e outubro eram o auge da produção do ouro branco, fartamente espalhado pelos campos e capoeiras que se tornavam alvejados de ponta a ponta, com a presença de incontáveis pés de algodão em pleno desabrochar dos capulhos. Era um colírio. E era um regozijo para a alma telúrica do caboclo roceiro, que por esse tempo, do produtor ao colheiteiro, forrava o bolso à custa do algodão. E muito sonho era realizado: a compra da bicicleta nova, do relógio de pulso, e da roupa e do sapato para a festa do Canindé.
Menino da roça e filho de agricultor, eu também ansiava, a exemplo de tantos colegas, pela chegada dessa estação opulenta. Não para “limpar o cabelo”, como faziam os adultos, mas para participar, com os da minha idade, das competições nas apanhas. Bornal a tiracolo, nos embrenhávamos entre as fileiras de pés de algodão, enchendo as mãos da pluma branca e macia, para ver quem mais depressa abarrotava os bornais. Disputa acirrada e divertida, da qual não recordo ter nunca me sagrado campeão.
Meu pai foi pequeno produtor de algodão, razão pela qual pude acompanhar, menino ainda, todas as etapas do cultivo dessa planta, que culminava com a colheita feliz. De repente nos víamos dividindo o vasto espaço da sala, com os imensos fardos de algodão sobre os quais eu, acrobata rústico, dava pulos e cambalhotas fantásticas. Aquele pé de algodão da beira do asfalto, com seus capuchos brancos, solitário, estava efetivamente acenando para imagens inapagáveis da minha infância. E acenando também para um passado de esplendor da economia agrícola do Nordeste; de uma opulência cuja divisa tinha o pomposo nome de “Ouro Branco”. Por esse tempo já distante, até mesmo uma rodovia do interior cearense ganhou a denominação singular de “Estrada do Algodão”, artéria na qual, por anos a fio, circularam a glória e a riqueza de uma época.
2 Comentários
Caro cronista/poeta, obrigado por, com tanta riqueza de detalhes, me permitir viajar na minha infância que, por sorte, guarda tantas semelhanças com a sua.
Parabéns por mais um excelente texto, poeta!
Infância revisitada
Um cenário de emoção
A festa do ouro branco
A riqueza do sertão…
Rubem Braga, Pedro Paulo
Pé de milho ou de algodão
PPP, meu Pai também foi pequeno agricultor. Tive o prazer de sentir o que magistralmente você expressou.