Escrever nunca foi tão prático como hoje em dia, depois do advento da era digital. Eu disse prático, e não fácil, bem entendido. Pois escrever, de alguma forma, ainda é um desafio não rara vez angustiante para nossa cuca. No começo da década de noventa do século passado, quando a velha máquina de escrever ainda era a vedete das redações de jornal, Rachel de Queiroz, em crônica memorável, desabafa: “Ontem, num programa da TV, discutíamos entre escritores e jornalistas o drama do papel em branco na máquina e, diante dele, o pobre de nós, obrigado a espremer o juízo até produzir qualquer coisa que encha as laudas necessárias e possa ir para a impressão”. Rachel morreu em 2003. Testemunhou, portanto, o alvorecer da era digital no Brasil. Mas, inegavelmente, produziu toda a sua obra literária na companhia inseparável da sua máquina de escrever.
Talvez hoje, a imortal autora de O Quinze falasse não em “o drama do papel em branco na máquina”, e sim, o drama da tela em branco, seja do computador, do notebook etc, visto que escrever é uma tarefa que sempre puxará pelo nosso bestunto. E como o assunto é a escrita na era da tecnologia moderna, é dos smartphones que queremos falar um pouco. Minimáquinas eletrônicas que fazem diabruras na palma da mão. Suprassumo tecnológico do século vinte e um. Utensílio compacto que, miraculosamente, reúne em si um leque de inventos humanos revolucionários, conectando-nos, quase todos nós, com qualquer lugar do mundo. Cinema, televisão, fotografia, rádio, só para citar alguns exemplos, estão contidos num aparelho celular moderno. Ah, e o telefone propriamente dito.
Outro recurso de relevância dos smartphones é a propriedade de, nele, o usuário escrever o que quer que seja. Neste caso, entra em cena o editor de texto, este parceiro inseparável para quem escreve, profissional ou amador. Contudo, entra em cena também um coadjuvante que, a bem da verdade, torna-se frequentemente um intruso, persona non grata e trapalhão: o corretor de texto. Antes de qualquer coisa, segundo se lê, a ferramenta pode ser desativada. Porém, pelo visto e pelos flagrantes diários de deslizes por conta do intrépido corretor, fica bem claro que pouca gente toma o cuidado de desativá-lo. E haja micos, coisas absurdas, em muitos casos, ininteligíveis até, notadamente em postagens e comentários nas redes sociais.
Alguns escorregos são cômicos. Outros, em vez disso, são comprometedores. Como exemplo, circula na internet o diálogo em que o marido informa à mulher, via WhatsApp, que havia saído do trabalho e estava com um amigo, num churrasco comendo picanha. O desastrado corretor de texto trocou “picanha” por “piranha”, provocando estremecimento entre o casal.
Mais um. A amiga manda mensagem de aniversário:
– Feliz aniversário, linda! Que Deus te elimine.
– Nossa! Falsa – protesta a outra.
– Mal-agradecida. O que eu disse?
– Que Deus me elimine!
– Mulher, desculpa. Foi esse maldito corretor de texto. Eu quis dizer “ilumine”.
Acontece também de você digitar “eu e ela” e o corretor automático acentuar a conjunção “e”, ficando “eu é ela”. Numerar os casos é humanamente impossível, inclusive, do emprego tão frequente de termos chulos. De tal forma, que o usuário atencioso tem sempre que, por ironia, corrigir os lapsos do corretor. E já devemos estar conscientes de que recursos eletrônicos como o intruso corretor de texto já constitui uma suposta “prestação de serviço” da tão badalada Inteligência Artificial. Imaginem só o que está por vir!
Rachel de Queiroz encerra sua crônica, citada no começo desta, afirmando: “Há um ditado que diz: o papel leva tudo. O mais certo seria dizer: o papel leva a tudo”. O mais certo agora, ilustre Rachel, seria dizer: “a tela leva a tudo”.
2 Comentários
Meu dileto amigo e poeta, escritor de altíssima qualidade, você como sempre abordando assunto do nosso cotidiano, mas esse de hoje está insuperável. Eu tenho sido vítima diária desse corretor que muitas nos indus a verdadeiro assassinato contra nosso língua mater. *Não sei como chegará aí esse comentário.
Na realidade PP devemos ter o mesmo cuidado de antes, na era da maquininha de datilografia. Ler o texto mais de uma vez antes de publicar. Os eventuais micos da correção automatica nos obriga a isso.