A exemplo do que pode acontecer com tudo neste mundo, meu relógio de pulso, dia desses, amanheceu sem funcionar. A bateria chegara ao fim. Em tal circunstância, o que se deve fazer é ir ao relojoeiro. Foi o que fiz. Trocada a pequena peça, a máquina volta prontamente a cumprir o papel que lhe compete: medir o tempo.
Tal acontecimento, por si mesmo tão corriqueiro, levou-me, contudo, a uma descompromissada comparação. Antes, porém, convém observar que o relojoeiro está na categoria daqueles profissionais com os quais se cria um ambiente familiar de aproximação, afinidade e fidelidade. Incluem-se, nesse rol, dentre outros personagens, o barbeiro, o engraxate, o bodegueiro (em via de extinção), o alfaiate e o relojeiro, com os quais se firma, amistosamente, um contrato por tempo indeterminado. Além disso, a cada um desses prestadores de serviço, via de regra avulsos, nunca se vai somente pelo assunto propriamente dito, mas também para botar o papo em dia, atualizar o “disse me disse” da cidade, a última da política etc. Dito isto, vamos, pois, à comparação.
Aparentemente, ambos os ofícios, cronista e relojeiro, nada têm a ver entre si. Mas, pensando melhor, há muito a ver. Para começar, esses dois operários lidam com o tempo. O primeiro narra, a seu modo, acontecimentos da vida cotidiana, sob o governo de Cronos, o deus mitológico do Tempo. O segundo ajusta e conserta os aparelhos que contam as horas, minutos e segundos de cada dia, obedecendo também rigorosamente aos ditames de Cronos.
E assim, de tal modo a observação me cativou, que este modesto escrevinhador, que toda sexta-feira subscreve a Crônica da Semana neste Portal eletrônico, foi ter com o relojoeiro mais veterano em atividade diária na cidade de Canindé. A profissão já virou seu sobrenome, e todos o conhecem sumariamente por Gonzaga Relojeiro.
São 45 anos regiamente batendo o ponto em sua pequena banca, localizada em um dos portões do Mercado Público Central desta cidade, apelidado por todos nós, conterrâneos, de Mercado Velho. Do ingresso na profissão até os dias presentes, muitos colegas, conta-me Gonzaga, já partiram, dentre os quais João Ibernon e Chico Félix, seu mestre. E também um incontável número de pulsos de clientes fidedignos deixou de bater, para ir contar as horas no relógio da eternidade.
Mas ali está ele, o relojoeiro da cidade, acumulando na bagagem milhares de horas de trabalho continuado, pontualmente cumprindo seu expediente e amparado pelo precioso currículo da longa experiência no ramo, fatores que lhe auferem uma credibilidade profissional inabalável. Bater um papo com ele é passear de volta num tempo ainda nem tão distante, mas nem tão perto, quando o relógio da moda era movido a corda ou pelos movimentos livres do pulso.
Voltando à comparação inicial, o cronista, igualmente, quase num ritmo circadiano, satisfaz periodicamente o seu público leitor, que é sua clientela e que dele espera, a cada presença, o que há para contar, de novo ou de velho debaixo do sol, nas linhas das páginas intermináveis do que chamamos de tempo.
Justificada a comparação, que Cronos, o Titã do Tempo, derrame suas bênçãos, a cada segundo, sobre o trabalho persistente do relojoeiro. E, de sobra, sobre o modesto ofício, também persistente, do cronista.
2 Comentários
Excelente essa crônica a respeito do métier do nosso amigo GONZAGA RELOJOEIRO, profissão essa que a tecnologia já ameaça sumir com o labor desses poucos que vivem a trabalhar com relógios, trocando as baterias, fazendo consertos e, por vezes trocando até a máquina.
Muito bom ver que, nestes tempos de T.I, I.A e outras siglas de modernidade, o relojoeiro (sobre)vive como se ele tivesse na mão o condão de ser senhor do tempo.
E melhor ainda é existir alguém que tem um olhar capaz de fazer permanecer o fato como se fosse atemporal.
(Verba volant, scripta manente?)
Respondendo à indagação da música quase secular: Por que não paras relógio?
Que bom Canindé poder contar, a um só tempo, com o operador da máquina e máquina e o operador da palavra.