Em tempos de campanha eleitoral, vale a pena, mais do que nunca, relembrar a saga do candidato Formiga.
Para começo de conversa, o processo eleitoreiro nos cafundós do sertão tem características bem diferenciadas do que acontece nos nichos urbanos, em tempo de eleição. O voto do eleitor matuto ainda é disputado dentro de padrões meio anacrônicos, naquela base da dinâmica do compadrio, da camaradagem e da visita acalorada do candidato, que uma vez eleito, sacode o pó das alpercatas e passa quatro anos em profunda e silenciosa ausência.
O anúncio da vinda de algum candidato ao grotão mais remoto enche de expectativa o lugar, onde o tempo corre moroso e quase sem novidade. Nos arruados e vilarejos, os comícios viram atrações e motivo de muito blábláblá entre populares. E é exatamente da seara interiorana, que se colhem pérolas do folclore político regional. A esse respeito, contou-me outro dia um amigo esse fato verídico, que acabou migrando para o anedotário popular. Vamos ao caso.
Formiga é o apelido de um sertanejo autêntico, exemplar nativo do meio rural. Ainda na infância ganhou o epíteto que o consagrou. E o tempo, mestre em consolidar as coisas, encarregou-se, de tal forma, de calcificar o apelido, que ninguém mais, exceto o próprio Formiga (e olhe lá!) sabe o seu verdadeiro nome de batismo. Ignora-se também a razão de ser da alcunha, haja vista que nada nele lembra o inseto que lhe emprestou o pseudônimo. De compleição robusta, boa estatura, mãos possantes talhadas para o trabalho pesado do campo, Formiga está mais para um Hércules rústico da roça, do que para qualquer outra coisa.
Conhecedor a fundo da problemática rural, traquejado na luta camponesa, experimentado em épocas rudes de seca, engajado nos movimentos sociais de sua comunidade, benquisto na redondeza e motivado por amigos, Formiga, levando em conta todo esse leque de vantagens, e recebendo corda de um e outro, resolveu, certa vez, lançar seu nome no pelourinho da disputa eleitoral, visando a uma colocação entre a edilidade.
O diretório do partido, a bem da verdade, não via nele a possibilidade de ser eleito. Porém, não resta dúvida de que os votos do Formiga, por poucos que fossem, somados aos da coligação, ajudariam a eleger aqueles com mais chance. (Prática legal, no entanto, convém dizer, de natureza assaz incoerente.)
De tal modo que, uma vez confirmada a candidatura, Formiga caiu em campo na batalha acirrada pela colheita de votos, à semelhança de sua luta incansável, em época de inverno, pela colheita de feijão e milho. E entra a participar de todos os comícios e eventos políticos, em tudo que é cafundó onde o voto é disputado a unha.
Orientado por um correligionário, adotou como divisa o lema: “Formiga vereador em prol do campo”. O slogan já continha em si mesmo um componente contraditório, uma vez que a formiga propriamente dita representa sempre severa ameaça à lavoura.
No palanque, arrastava a fala como se arrasta a enxada na limpa de mato, e vibrava o tom de voz, acompanhado de gestos desarticulados, sustentando um discurso que girava inteiramente em torno das dificuldades e agruras do trabalhador rural, em seu entender, esquecido sempre, sujeito a todo tipo de revés, desamparado, carente de ajuda e de representação etc etc. E era com o intuito de combater toda essa praga de injustiça, que Formiga assegurava planos de ação enérgica, projetos e mais projetos, um abecê de promessas e propostas que ele logo aprendeu na cartilha política de velhos candidatos passados na casca do alho na arte de cabalar o povo.
Para surpresa de todos, na reta final da campanha, Formiga recuou inexplicavelmente, perdeu o gás, ficou amuado e recusou-se terminantemente em se manifestar no palanque, ao lado dos seus companheiros de coligação. E não havia demônio que o fizesse mudar de ideia. Limitava-se unicamente em ouvir, acuado, a fala dos colegas. Intrigado com esse comportamento, o coordenador da campanha chamou Formiga em particular e o interrogou, olho no olho:
– O que está havendo, Formiga, que você não discursa mais? Sua fala tocava o coração do povo, dos seus irmãos do campo, da gente humilde, homens e mulheres, e, de repente, você se cala dessa forma tão estranha! O que tá havendo?! Diga só para mim.
Do alto da sua sinceridade de caboclo genuíno, Formiga respondeu, firme, no seu linguajar puro e íntegro:
– Doutô, o sinhô quer saber mesmo por que eu num falo mais nos comício? Né por outra coisa não, doutô: é que eu não tenho mais mentira pra dizer pro povo. O estoque acabou!…
2 Comentários
Belíssimo texto, poeta!
Os “Formigas” estão sendo engolidos por “Zangões” nesse jogo político e, segundo o linguajar eleitoral, “servindo de bucha para a munição daqueles(as) que gerenciam as siglas partidárias.
Vou repetir: Belíssimo texto!
Um forte e cordial abraço!
Parabéns pela ótima crônica, poeta! Você descreveu com humor como é a nossa triste política, contando a história real do Formiga!!