Embora apostador bissexto, aqui acolá arriscando algum trocado no milhar, confesso mesmo que tenho um motivo remoto para não me maldizer da tentativa. Eu ingressava na maioridade, quando, uma sexta-feira, tirei do bolso uma nota verde de um cruzeiro e arrisquei no milhar do cachorro, que, diga-se de passagem, dos 25 bichos é o que mais dá prejuízo aos banqueiros. Foi batata. À noite, quando correu o jogo, deu o milhar inteiro na cabeça, e a nota de um cruzeiro multiplicou-se em quatro mil. A bufunfa foi suficiente para comprar a máquina fotográfica dos meus sonhos, por esse tempo, uma Olympus Trip. Desde então, porém, a sorte no jogo do bicho não mais me acenou tão generosa, pelo menos até a noite de ontem.
Outro dia, teimando novamente com a buena-dicha, pelas mãos de um bicheiro conhecido, ocorreu-me a curiosidade de buscar as origens dessa prática integrante da vida brasileira, em especial, da vida urbana em todas as cidades deste imenso país.
E o que descobri é que “o jogo do bicho foi criado por um certo João Batista Viana Drummond, em 1892, como um meio de aumentar a arrecadação financeira do jardim zoológico mantido por ele, no Rio de Janeiro. Na origem do jogo, ao adquirir um ingresso, o visitante ganhava também uma figurinha de um dos 25 bichos da lista a serem sorteados. Quem tivesse a figura do bicho sorteado ganhava um prêmio em dinheiro”.
Tal Barão de Drummond saiu de uma pequena aldeia do interior de Minas Gerais, para, no Rio de Janeiro, tornar-se amigo do rei, ninguém mais nem menos que o imperador Pedro II. Na então capital federal, Drummond tornou-se abolicionista, ganhou de Sua Majestade o título de Barão e a concessão do Jardim Zoológico, num bairro que ele fundou e deu o nome de Vila Isabel, exatamente ali onde anos mais tarde nasceria o genial sambista Noel Rosa. E mais que isso, Drummond foi o administrador da Estrada de Ferro Dom Pedro II, criou também o serviço de bonde que ligava a região de Vila Isabel à Praça da Constituição, atual Praça Tiradentes, construiu um bulevar e, em 1874, foi presidente do Jockey Club. Pelo visto, fez mais pela cidade carioca que o chefe do poder municipal à época.
Bom, e o poeta? Que relação poderia haver com o jogo do bicho? Entre a jogatina propriamente dita, nada. Entre seu criador, sim. João Batista Viana de Drummond, o primeiro e único Barão de Drummond, nasceu em Itabira, terra natal também de Carlos Drummond de Andrade, de quem era primo. Por isso, já famoso nas letras nacionais, Drummond, o poeta, escreveu uma crônica intitulada “Aniversário do Barão”, sesquicentenário, e publicada no Jornal do Brasil, em 1º de maio de 1975. “O jogo inocente, que conquistou a simpatia de toda população, merece pelo menos indulgência, em vez de ser julgado por um moralismo hipócrita, cuja defesa se associa veladamente à sua exploração”, protesta o poeta.
Tido como contravenção nacional desde a década de 1940, o jogo do bicho é tão brasileiro quanto o samba e o futebol. Faz parte do folclore, uma vez que envolve simpatias, sonhos e palpites de toda ordem. A pé, de bicicleta, motocicleta ou mesmo estacionado diante de sua banquinha posta na calçada, o bicheiro é o embaixador da sorte e ator no palco do comércio informal, em que se apresenta, diariamente, um sem-número de outros sobreviventes na periferia inculta do capitalismo abjeto. O pedaço de papel ordinário onde o bicheiro anota a sorte do apostador teve sempre um valor de confiança inquestionável. E se este argumento deixar, por acaso, transparecer qualquer coisa de apologia à contravenção, é hora também de lembrar que, apesar de ilícito, o jogo do bicho tem qualquer coisa de mais confiável do que as deploráveis licitações de verbas públicas tão corriqueiras hoje em dia. A pule do bicheiro é uma espécie de “apólice” a depender unicamente da sorte daqueles que não tiveram a “sorte” dos que nascem com a retaguarda virada pra lua.
E ainda por falar em palpite, conta-se que o Barão de Drummond costumava dar palpites aos apostadores. Certa ocasião, alguém o interrogou:
– Que bicho poderá dar hoje, senhor Barão?
– Não sei dizer ao certo, amigo, mas vai dar um bicho que tem til.
O cliente apostou forte no leão, pavão e cão (cachorro). À noite, deu cobra. Frustrado, o apostador, na manhã seguinte, desabafou com o barão:
– O senhor usou de má-fé, pois disse que dava um bicho que tem til, e, no entanto, deu cobra!
– Ora, amigo – respondeu calmamente o Barão –, e você não sabe, por acaso, que cobra é um reptil?!…
1 comentário
Impecável seu texto, ilustrador desse costume nacional, onde grande quantidade de pessoas faz a sua fezinha, inclusive o nosso fígaro Moésio é um jogador contumaz. E verdade seja dita a pule do jogo do bicho, tem mais valor do que as letras de Câmbio do governo federal.