
É assim que os cearenses chamamos o encerramento da quadra chuvosa, de janeiro a junho, quando não há seca. Eu não esperava encontra-la no Aurélio, mas eis que lá está, dicionarizada pelo mestre do pai-dos-burros. “Bras. CE – O fim da época chuvosa, em junho”, sintetiza o léxico.
Desmembrada a expressão, temos dois substantivos e uma preposição no meio, que no dicionário foram aglutinados e viraram um único substantivo masculino plural. Fins-d’água tem sua genealogia no nosso linguajar caboclo. É patrimônio do nosso cearencês. Brotou do espírito do povo, mestre em criar seus próprios verbetes e expressões, nos quais expressa todo o seu poder empírico de observação de tudo ao seu redor. E não há nada mais bonito do que ouvir de um raro sertanejo genuíno, imune a modismos, a sua fala espontânea de uma originalidade singular.
O assunto veio à tona quando, no começo de junho, trocamos um dedo de prosa, eu e um amigo vizinho de cerca, camponês calejado e de muitos janeiros nas cacundas. O rumo da nossa conversa foi, por natureza, o inverno, pois nada há de mais imperativo no sertão do que a chuva. Ajeitando o chapéu de palha na cabeça embranquecida, assuntou: “Já tamo nos fins-d’água, o inverno tá pegando o beco. A lua nova num tá mais pendida e a estrela d’Alva tá pra se mudá pro poente. Mas num ai o que recramá, foi um inverno pai-d’égua, cumo fazia tempo que num se via”.
Em poucas palavras, ele expôs uma série de observações essenciais, inclusive astronômicas. A lua nova inclinada, com as extremidades viradas para o norte, no começo de janeiro, na experiência matuta, é indicativa de chuvas. Vênus, que passa uma temporada visto no leste e outra no oeste, é também sinal de bom inverno quando brilha de manhã no nascente, recebendo o nome de estrela d’Alva.
“O carreiro também num tá mais munto manchado”, complementou esse meu amigo e conterrâneo catingueiro. O carreiro da observação dele nada mais é que a Via Láctea, e as manchas, por certo, são os aglomerados estelares. Se variam de intensidade, a palavra é com os astrônomos. O certo é que, neste momento, tudo justifica que chegou mesmo o fins-d’água. Palavra sucinta, na qual cabe uma gama extraordinária de conceitos e efeitos, para enfatizar apenas um dos incontáveis vocábulos próprios de nós cearenses.
E há ocasiões em que, como numa regressão verbal ao período de colonização, o nosso homem do sertão atreve-se, inconscientemente, a falar o português culto. Exemplo é quando diz barrer, bassoura, assobio, brabo, numa troca de fonemas que os filólogos chamam de betacismo. E para justificar a erudição linguística de nossa gente, basta (vasta) ouvir Camões, no primeiro verso de Os Lusíadas, falando-nos de uns “barões assinalados”, que no bom entendimento são “varões assinalados”, e dando-nos a garantia de que não há erro em se trocar, em tais ocorrências, o v pelo b.
Nosso cearensês é mesmo um luxo linguístico. Ninguém, fora daqui, em todo esse mundão brasileiro, jamais concebeu palavra tão suficiente em si mesma, tão cabal e tão arretada, para dizer que o ciclo das chuvas terminou.
Fins-d’água e tamo cunversado.