Caminhando pela rua, numa dessas manhãs ensolaradas, de súbito veio-me à lembrança a figura de um personagem típico da paisagem urbana, e hoje em dia quase desaparecido: o vendedor de picolé. Aquele mesmo que, infatigavelmente, empurrava o carrinho anunciando, com voz rasgada: “Ó o picolééé!” “Ó o picolééé!”. E completava o reclame com a lista de sabores: “ Tem picolé de coco, abacate, morango, leite, creme, maracujá, abacaxi…”.
E seguia, rua arriba, rua abaixo, empurrando o carrinho de duas rodas, repleto de picolé, numa faina constante. Dentre todos, um conheci, com seu boné meio atravessado na cabeça e um sorriso de felicidade estampado no rosto tostado de sol, curvado, empurrando o carrinho e repetindo: “Ó o picolééé!” “Ó o picolééé!” “Tem picolé de coco, abacate, morango, leite, creme, maracujá, abacaxi…”.
A agitação cada vez crescente do dia a dia e o corre-corre do mundo atual parecem ter tirado sorrateiramente de cena o vendedor de picolé da rua. Ele já não é mais visto também nas praças nem no portão das escolas. E isto me recorda os meus tempos do curso primário. Na saída das aulas, diariamente, lá íamos nós, correndo ansiosos, ao encontro do carrinho de picolé estacionado em frente ao portão. Nem todos nós, estudantes de escola pública, dispunha do níquel para comprar o produto. Os mais bem aquinhoados e de bom coração botavam a mão no bolso do uniforme e bancavam o picolé de um ou dois colegas de turma.
Fora dali, por toda a cidade, mesmo os adultos também não dispensavam o sabor de um picolé, pois nas horas de calor intenso, o picolezeiro era como que um socorrista. Daquela labuta diária, uma legião de vender ambulante de picolé tirou seu ganha-pão e o sustento da família. Da sorveteria, de manhã e de tarde, partia a frota de carrinhos abastecidos com os picolés de palito. Os mais sofisticados incluíam também no estoque o sorvete revestido na casquinha crocante, parecida com rabo de tatu.
E ainda, para auxiliar na divulgação, alguns carrinhos eram equipados com buzina do tipo fon-fon – aquela mesma usada nas bicicletas antigas – para chamar a atenção da clientela. Vendedores mais avançados utilizavam-se, até mesmo, de pequenos megafones, anunciando: “Ó o picolééé!” Ó o picolééé!”. “Tem picolé de coco, abacate, morango, leite, creme, maracujá, abacaxi…”.
Quanto ao consumidor, os mais criativos tinham a oportunidade, inclusive, de posse da coleção de palitos, de praticar brincadeiras como quebra-cabeças, desenhos de encaixe e de memória e outras diversões que auxiliavam no desenvolvimento do raciocínio e da coordenação motora da meninada. Algo muito aquém da era do celular, internet e toda a parafernália eletrônica do século vinte e um.
A concorrência frenética, por certo, foi a responsável pelo desaparecimento desse trabalhador informal que compunha a fauna urbana, das pequenas às grandes cidades. Atualmente, a venda de sorvete e picolé em lanchonetes, mercadinhos, supermercados, praças de alimentação e outros ambientes congêneres deve ter contribuído para remover, do tempo e do espaço, o vendedor ambulante de picolé.
A mutabilidade constante das coisas e a borracha implacável do tempo construtor do presente e demolidor do passado apagaram, de todo ou quase todo, a figura do picolezeiro e seu carrinho de duas rodas, empurrado rua arriba, rua abaixo, anunciando: “Ó o picolééé!” “Ó o picolééé!”. “Tem picolé de coco, abacate, morango, leite, creme, maracujá, abacaxi…”.
Imagem que nos provoca, mentalmente, a parodiar Jorge de Lima, e começar dizendo: “Cadê o vendedor de picolé da rua? / Esse mesmo que vinha, infatigavelmente…”.