É fato evidente que há um liame muito forte, inquebrantável mesmo, podemos dizer, entre amigos e livros. Dentre a infinidade de coisas que aproximam entre si determinadas pessoas, o livro é, incomparavelmente, o objeto afeiçoado em comum entre dois ou um grupo de amigos. Comentar a leitura de um livro com um colega leitor, concordando ou divergindo, é transpirar pela alma as impressões do que se acabou de ler. E deve ter sido de tais circunstância e necessidade que surgiram as chamadas academias de letras, que hoje em dia pululam por aí a torto e a direito.
Nesta era moderna, dominada por bits e algoritmos, ter um amigo e colega que não abre mão do texto impresso, que aprecia um bom livro com os cinco sentidos, é um patrimônio que deve ser preservado a todo custo. Essa simbiose amigos-livros gera ainda uma situação complementar: a permuta ou oferta de livros. Nesse âmbito, particularmente, já acumulo uma boa prateleira de volumes que tenho recebido de presente, muitos deles autografados, e que me chegam por meio do serviço postal ou pelas mãos bondosas de um portador.
A oferta mais recente vem datada de abril deste ano e autografada pelo escritor Clauder Arcanjo, uma das minhas amizades construídas através de livros. Um provinciano no caos é o título de sua mais nova publicação. Livro de poesias. Um autorretrato poético. Uma ode ao seu chão. O autor roteiriza em versos ou cânticos a sua caminhada, desde seu desembarque neste mundo, até o momento presente. Assim, a obra está repartida em quatro capítulos: Infância, Juventude, Madureza e Afinal, título que ele escolheu para o epílogo.
Li de uma assentada, na calma de uma boca de noite sertaneja, cujo bucolismo fez-me aspirar mais fundamente a essência que há nas palavras do poeta.
As reminiscências de infância, o calor paternal e maternal, a fraternidade numa prole na qual ele se declara nem “primogênito nem benjamim”. Os tipos provincianos de sua aldeia. A festa de Senhora Santana. A lugubricidade das missas. A puerilidade plena de um começo de vida pura e livre. De pássaro feliz. Relembranças da Primeira Comunhão, em que a “língua impura tremeu assustada, com receio das chagas de Cristo” (cântico XII). As primeiras investidas de Eros e suas tentações, diante das evas em algazarra nos banhos de rio. A descoberta dos livros e dos cicerones que o conduziram para sempre ao mundo encantador das letras.
E depois a juventude, com seus imperativos de mudanças. A primeira hégira e o primeiro exílio. A exemplo do rio Acaraú, seu amigo de infância, o poeta teve que buscar o litoral, onde o oceano salgado e largo assustou-lhe a alma. A vontade de voltar, a importância de seguir em frente, num duelo constante, agarrado à saudade, “companheira fiel dos meus desterros”. A vida universitária, mergulhado no caos da metrópole imensa e pavorosa. A segunda fuga, para terras mais distantes. O trabalho, a família. E o mar, então, que o assustou à primeira vista, tornou-se o chão e o seu batente como engenheiro.
Clauder Arcanjo encerra seu livro com o capítulo Afinal. Porque, afinal, a vida segue, com sua bagagem de tudo até agora reunido. Ulisses inconsolável, em sua odisseia de incorrigível provinciano, ele tem consigo, todavia, uma vantagem sobre o seu inesquecível rio Acaraú, que jamais regressa do mar, para, com suas águas doces, beijar de novo as areias por onde passou. Pois ao contrário, o poeta, vez ou outra, regressa, como um salmista genuflexo, à sua Santana do Acaraú, à Licânia da sua inspiração e da sua literatura, à sua Ítaca adorada. E ali busca, par’alma, algum auxílio; para depois, por força do destino, retornar, cabisbaixo, ao seu exílio.
4 Comentários
Muito bom, PPP. Eu que o diga o quanto é importante e salutar essa permuta na aquisição ou troca, mesmo que temporária, de bons livros. Sem perder de vista uma prosa pertinente que certa vez vc pontuou, ”Emprestar um livro é como mandar um filho pra guerra, ou não volta mais ou virá todo lesionado…” kkkkkkkk
Obviamente que existem as exceções! Forte abraço, Pedro Paulo Paulino.
Obrigado, Ney Alcântara!
Que crônica maravilhosa, escrita com o coração apaixonado de um leitor assíduo e amigo admirador do autor.
Obrigado, amigo Freitas!