Alice, uma menina curiosa, cai em um buraco de coelho e, ao entrar em um mundo completamente insano e lógico ao mesmo tempo, encontra uma série de personagens e situações que desafiam a compreensão. “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, é uma obra que transcende o seu tempo e, ao ser lida na contemporaneidade, continua a provocar reflexões sobre o absurdo da vida e as complexidades da nossa própria sociedade. Talvez, mais do que uma simples história de fantasia, a obra de Carroll seja um espelho distorcido das contradições do mundo moderno.
O Coelho Branco, sempre apressado e nunca no tempo certo, reflete a sociedade atual, onde as pessoas vivem correndo, constantemente atrasadas, mas nunca sabem muito bem para onde estão indo. Na era da hiperconectividade e das demandas constantes, o Coelho Branco é o símbolo de nossa ansiedade crônica, sempre com o celular na mão, sempre esperando algo mais.
A Rainha de Copas, com sua autoridade implacável e seus comandos do tipo “Cortem-lhe a cabeça!”, evoca as figuras de poder de nossa sociedade — líderes autoritários e impositivos, que comandam com ameaças e que, muitas vezes, não sabem nem ao certo o que estão fazendo. Em tempos de polarização, as figuras da Rainha são onipresentes, governando por medo e pela imposição da obediência, sem espaço para questionamentos.
A lagarta, com sua natureza introspectiva e desinteressada pelas normas, poderia ser vista como uma metáfora para aqueles que se recusam a seguir as regras do jogo e buscam respostas próprias para as questões da vida, sem se submeter à pressão da conformidade. Ela oferece a Alice uma mudança, um novo ponto de vista — algo raro em uma sociedade onde a conformidade é muitas vezes incentivada em detrimento da individualidade.
E há o Gato de Cheshire, com seu sorriso enigmático e suas respostas vagas, uma imagem perfeita para o mundo das redes sociais. Ele existe e, ao mesmo tempo, não existe, é onipresente na vida das pessoas, mas com uma ausência de substância real. Sua presença é confortável e desconfortável ao mesmo tempo, como as interações superficiais que predominam em uma era digital, onde o que é visto pode não ser verdadeiramente o que se é.
Agora, se considerarmos a trajetória de Charles Lutwidge Dodgson — o verdadeiro nome de Lewis Carroll — podemos perceber que ele também estava navegando por um mundo repleto de normas rígidas e expectativas sociais. Dodgson era um matemático e lógico renomado, professor universitário, mas também um autor que desconstruía a rigidez da lógica por meio da fantasia. Sua obra nasceu, em parte, do desejo de criar algo que desafiasse as convenções de sua época, uma época vitoriana marcada por um certo conservadorismo e por regras sociais implacáveis. Carroll, com sua habilidade em brincar com palavras e lógica, criou um universo no qual as certezas são subvertidas e as convenções são desfeitas.
O autor, que viveu entre 1832 e 1898, teve uma vida peculiar. Além de sua carreira acadêmica, era apaixonado por fotografia e, em muitos momentos, demonstrou uma profunda preocupação com a infância e com a liberdade criativa que as crianças possuem. Ele era um homem introspectivo, com relações que na época causaram especulação, especialmente no que diz respeito à sua amizade com as irmãs Liddell, cuja filha Alice foi a inspiração para a protagonista da obra. Carroll escrevia, em parte, para capturar a pureza e a curiosidade que as crianças mantêm antes de serem imersas nas rigidezes do mundo adulto. E, em um certo sentido, ele também se rebelava contra o contexto restritivo de sua época.
Hoje, “Alice no País das Maravilhas” não é apenas uma obra infantil, mas uma alegoria rica que pode ser interpretada sob múltiplas lentes. Em um mundo cada vez mais complexo, onde as identidades, os valores e as certezas parecem se dissolver, o livro de Carroll continua a nos convidar a olhar para a vida de maneira diferente, sem medo do absurdo, mas com uma curiosidade que transcende qualquer lógica.
Talvez, no fundo, Alice seja todos nós: tentando encontrar sentido em um mundo que não se encaixa nas regras tradicionais, perguntando-se onde realmente estamos indo, tentando entender quem somos. A pergunta que ecoa através das páginas da obra — “Quem é você?” — é talvez a mais importante de todas. Uma indagação não só para Alice, mas para cada um de nós, em um tempo de constantes transformações.
Em tempos de incerteza e de desafios para compreender o nosso papel, a obra de Carroll, com sua mágica e absurdo, continua a nos lembrar de que, embora o mundo ao nosso redor pareça confuso e incompreensível, talvez seja exatamente assim que ele sempre foi — e que, como Alice, nossa única opção é seguir em frente, com coragem, e, quem sabe, um pouco de sorriso do Gato de Cheshire.
1 comentário
Ótima reflexão.