Durante a alta estação da romaria em Canindé, no mês de outubro, há um clichê tão repetido, que é como se fosse um comando gravado no cérebro e acionado automaticamente. Só os nativos entendem. Trata-se do “depois da festa” – uma frase curta, mas de enorme efeito, que implicitamente e de caráter recíproco é acatada e compreendida por todos.
Aquele compromisso, aquele projeto, aquela incumbência antes impreterível, aquela promessa de algo, ficam agora reservados para… depois da festa. O passeio fora da cidade, a compra de um objeto, o filme inédito, o encontro rotineiro que põe em dia a fofoca da rua, tudo agora fica para… depois da festa.
Isto porque a festa de São Francisco absorve de corpo e alma a maioria dos habitantes da cidade, dedicados neste momento a ocupações extras, licenciados de seus afazeres costumeiros e voltados exclusivamente para os dez felizes dias de agitação. É aí que entram em campo, com todo o seu poder de convencimento, com todo o seu conteúdo profundo e significativo, essas três palavrinhas mágicas: “depois da festa”.
Dessa maneira, não existe quem, sendo nativo, contraponha-se ao “depois da festa”, uma vez que todos compartilham essa espécie de senha temporária no convívio social. É um recurso indispensável na agenda coletiva. É quase um patrimônio linguístico da cidade. Por isso, a frase tem aquele peso de uma fórmula e reduz em si, por certo, um amplo conceito psicológico. É traduzida instantaneamente no inconsciente de quem a ouve. “Depois da festa” encerra ideia de tolerância, transigência, complacência etc.
“Depois da festa eu falo contigo”, por sua vez, é tão-somente um desdobramento suave da sentença por demais utilizada. Pode-se também, mesmo a distância, fazer aquele gesto positivo com o polegar, e dizer alto a um conhecido: “Depois da festa, viu?!” O assunto é implícito. Neste gesto e palavras aparentemente vagos impera um incrível consenso íntimo, um entendimento tácito organicamente captado pelo ouvido. Por convenção, até dívidas ficam proteladas para… depois da festa. “Sobre aquele assunto, depois da festa a gente conversa”… Mesmo porque, a festa de São Francisco, apesar de seu valor espiritual, torna-se ainda, para muita gente, aquela chance periódica de engordar a burra ou, noutro dizer bem nosso, “limpar o cabelo”. Assim sendo, diletos credores, até… depois da festa.
2 Comentários
Caro cronista, posso afirmar categoricamente que esse é mais um texto brilhante, um deleite para nossas mentes. O título – DEPOIS DA FESTA – é muito sugestivo e o texto diz muito, ou tudo, sobre esse sentimento de todos nós.
Espero que possamos nos ver “depois da festa”, meu bom amigo.
Forte abraço!
Obrigado, poeta Arlando Marques! Nos veremos depois da festa. Abraços!