Sempre que chega o carnaval, pergunto-me: afinal, que folião sou eu? Que amigo sou eu da folia, se jamais me comportei, em momento algum, como um súdito do Rei Momo? Mesmo na quadra mais radiante da existência, que é a dos 20 aos 30 anos, mantive-me sempre, por exclusiva vontade e vocação, à margem dos festejos carnavalescos. Jamais pus uma máscara em meu rosto, uma fita sequer que pudesse identificar em minha indumentária qualquer coisa que lembrasse o carnaval. Enfim, jamais arredei o pé em busca de um baile de carnaval, de tantos que se multiplicam por aí nas seguidas noites da grande festa. Que folião sou eu?!
O contágio do período de Momo, em mim, é inversamente proporcional ao clima de euforia que toma conta do espírito do grande público. Em minha índole, esse intervalo de tempo potencializa mais ainda minha disposição de aproveitar cada vez mais o sossego e a tranquilidade, sem sair de casa, usufruindo com íntimo prazer a serenidade quase conventual da vivenda e seu isolamento salutar, sorvendo o ar puro próprio da roça, apreciando cantiga de passarinhos, na companhia de uma multidão silenciosa de pessoas que desfilam nas páginas dos livros meus companheiros de todo santo
dia.
De modo tal, que tudo ao meu redor conspira no sentido de comprovar que a atmosfera do carnaval passa longe deste pequeno nicho do mundo onde sou inquilino de nascença. Do amanhecer ao anoitecer, a natureza é a rainha absoluta desta corte onde os ventos acariciam a folhagem da mata, território das aves nativas e de outros viventes plenos de liberdade. Durante o dia, em vez das chuvas ansiosamente esperadas pelo sertanejo, o céu abre a larga estrada por onde galopa o sol, com todo o seu carrossel de fogo. À noite, a arena celeste torna-se pontilhada de estrelas que, como em procissão, tremeluzem infinitamente longe dos nossos olhos. A qualquer hora do dia ou da noite, de todas as vozes que aqui se levantam, o silêncio fala mais alto, com seu timbre de veludo acariciante.
Para completar o quadro de negacionismo carnavalesco, chega em meu alpendre um amigo, cuja fantasia rústica são os calos das mãos, rosto talhado de sol, olhar de súplica constante, maldizendo, num tom arrastado de voz, a falta de chuvas e a ameaça de mais uma seca, que é o mote do momento em qualquer dedo de prosa que se tire com essa gente.
Dentro desse panorama, as únicas notas que lembram ser agora carnaval vêm da parafernália eletrônica doméstica. Mas, num átimo, desligo tudo, agarro a pena e sintonizo o pensamento nesta crônica que ora escrevo, destinada aos meus diletos leitores pierrôs, arlequins e colombinas, com as bênçãos profanas de Momo.