Música e perfume, sabemos, marcam momentos para sempre. A essa diminuta lista eu acrescentaria a chuva. Pelo menos para nós habitantes do quase deserto, onde as benesses do céu são raras, a volta das chuvas traz consigo uma enxurrada de gratas lembranças que nos remetem a momentos mágicos, em especial, aos dias da nossa bendita infância.
Na transformação radical do clima, há um choque térmico nas emoções. Relembranças saborosas de instantes congelados na memória, e que de súbito vêm à superfície dos sentimentos, transportando-nos para algum lugar do passado – às vezes nem tão distante. Imagens de alguns outros tempos. Sensações lúdicas e líricas. Recordações quase palpáveis. Percepções revividas. Tudo isso talvez porque a chuva tem suas melodias e seus perfumes. Sua batida ritmada no telhado, na calha do alpendre, na folhagem da mata ressequida, no chão surrado de sol, nas palmas de nossas mãos. E seu perfume, que agora emerge da terra molhada, dos ares refrescados, do recinto interno do aconchego, da natureza inteira ao nosso redor… Sim, a chuva tem perfume e música. Daí sua razão marcante de ser.
Perfume tem o poder de nos transportar aos recônditos da nossa memória e da nossa alma, de nos levar de volta a endereços há muito deixados para trás e ofuscados pela poeira do tempo. Assim, o perfume, participante daquele instante tão remoto, deixou mapeado em nosso sentimento íntimo cada mínimo detalhe da ocasião. E então, como um cicerone infalível, seu cheiro nos conduz de repente pelos labirintos das recordações mais profundas.
A música tem igual poder de nos teletransportar ao passado. Uma ou duas notas de uma melodia marcante em nossos tímpanos bastam para embarcarmos numa viagem vertiginosa pelas trilhas das
nossas reminiscências. E quando a trindade chuva, música e perfume reúnem-se num dado momento, há como que um bombardeio arrepiante sobre o império dos nossos sentidos, fazendo-nos recobrar cenas, coisas e até pessoas quefugazmente passaram diante dos nossos olhos. “Eu não sei evitar numa reminiscência longínqua a saudade violeta de certa criaturinha indecisa que nunca tive”, proclama o romancista português Mário de Sá Carneiro, quem sabe, talvez tocado, no momento em que escrevia, por um cheiro de perfume antigo, ou pela nota musical de alguma velha canção, ou pelo datilografar romântico dos pingos de chuva no telhado, ou pelas três coisas juntas: chuva, música e
perfume.