Eles despertam com o amanhecer. O mais festivo e canoro é o Cardeal, que entre nós é mais conhecido como Galo-de-campina. É o seresteiro comum das manhãs, em especial, na estação das chuvas. Seu canto mavioso espalha-se de todo pelos ares, avisando aos demais viventes ao seu redor que o dia está começando.
Com o crescer das horas, ecoa, inimitável, a voz da Fogo-apagou, cujo nome é uma onomatopeia da sua própria cantiga. Já aquele outro, de onde quer que ele esteja, impossível é não se ouvir sua canção amorosa: o Bem-te-vi, o indiscutível tenor da mata.
Na apresentação dessa orquestra de bicos e de asas, assumem também suas posições de canto o Caboclinho, o Papa-capim e outros personagens de vozes mais miúdas, porém não menos importantes na sinfonia diária da minifloresta sertaneja.
Quase todos eles, diga-se, são viventes que habitam de livre e espontânea vontade o meu quintal, nas manhãs e tardes, atraídos pelo alpiste e o xerém espalhados estrategicamente no chão. O espaço é um viveiro a céu aberto, frequentado também, vez ou outra, pela turma barulhenta dos periquitos de cor verde-esmeralda. Compõe ainda o quadro, a família das Casacas-de-couro, trajando seu terno marrom franciscano, exibindo seu topete engalanado e bicando o tronco das árvores. Os Anuns Brancos não são exceção nessa fauna diversa e harmoniosa.
Mais recentemente, um casal adventício apareceu para colorir e ilustrar com sua voz e beleza estética, esse palco aprazível: o Corrupião, Concriz para alguns, Sofrê para outros. Fiquemos com o Corrupião,
imortalizado e lamentado na prisão, nos versos do poeta Augusto dos Anjos. Ninguém, dentre todos esses aqui falados, é dono de uma voz tão romântica e de uma cantiga tão modulada. Igualmente, não há quem se vista de maneira mais elegante e charmosa. Como é do seu feitio, não constrói sua habitação, preferindo afanar de qualquer modo o ninho alheio, como cá se apossaram do ninho do Anum Branco, construído no topo do galho da algarobeira.
Porém, falando de grandeza e fama, reservemos o primeiro lugar para uma ave soberana, com requintes reais e de uma altivez sem par: o pássaro Cancão, ou Cancã, como quer o Aurélio. São eles a grã-finagem da caatinga, exóticos, gregários e adotando entre si a regra, conforme a qual, é um por todos e todos por um. São família. Vivem e convivem lealmente nos seus bandos. Nidificam em lugares remotos, não identificados. Depois remigram, trazendo os frutos dos seus acasalamentos, já crescidos, mas ainda recebendo o alimento diretamente do bico dos genitores. E têm ainda mais o dom de poliglotas, falando a mesma voz de outras aves da redondeza, imitando-as com perfeição. Estão sempre alertas e em formação, num esquema de defesa absoluto. Ainda assim, dia desses, fui testemunha ocular de uma tragédia. Um gato vadio e forasteiro, surgido do nada, conseguiu, num momento raro de vacilo dos Cancãs, atacar e capturar um deles. Com o pássaro preso nos dentes, o felino transgressor caminhou apressado em direção à mata. Algazarra geral. A exemplo de uma esquadrilha de guerra, um grupo determinado de Cancãs sobrevoou a trajetória do bichano, disparando gritos estridentes, na vã tentativa de salvar o companheiro. O felino, todavia, some, para reaparecer momentos depois, de bucho cheio. O fato, conquanto lamentável, é de admirar, pois o Cancão, não à toa, é apelidado Cancão de Fogo, dada a sua esperteza e inteligência.
Perdi, pois, nesse fatídico dia, um dos viventes do meu quintal.